
Por muito tempo, assinei esse carimbo antes de liberar uma boneca para a gráfica, quando ainda trabalhava numa grande editora. Boneca é o nome que se dá à última prova do livro, aquela que segue para a gráfica e serve de base para a impressão. Apesar de ser um ato rotineiro, sempre me dava um frio na espinha. É tarefa solitária, você e a prova ali, a responsabilidade de dizer que não há mais nada a ser feito. Está sacramentado.
O editor assina, mas é importante dizer que produzir um livro é tarefa coletiva. Mesmo quando feito por autor independente ou editora pequena, algumas fases essenciais dependem da colaboração de outros pares. E essa rede se fortalece à medida que um enxerga o que o outro não percebeu: o autor escreve e o revisor lapida a mensagem; o editor tem uma ideia e o designer a devolve melhorada; o produtor idealiza um efeito e a gráfica acerta no resultado.
E foi assim ao longo dos muitos meses de edição do primeiro livro da Serra da Barriga. O PRIMEIRO LIVRO. Aquele que será nosso cartão de visitas para autores, colaboradores e leitores daqui em diante. Quando o Jaime me passou o original do livro e pediu que eu cuidasse da produção, eu já sabia o quão simbólico seria esse processo. Um livro para lançar uma nova editora no mercado, uma obra já há tanto tempo fora de circulação, um autor negro desconhecido para os leitores de hoje. Frio na espinha.
Havia mais do que pensar no formato, em qual papel e pra quando seria o lançamento. Precisei dar um mergulho no texto, não quis delegar a preparação dos originais porque queria conhecer intimamente o Vagalume. Nessa fase inicial, a gente conhece o autor e entende as pistas, capta o que ele espera da gente. Mesmo nesse caso, um escritor já ausente, ou talvez ainda mais importante por isso, ele não está aqui para dar a própria opinião.
Algumas decisões já haviam sido tomadas, como a de convidar o professor Leonardo Pereira para fazer o posfácio e escrever as notas que contextualizam a obra. Não sei quem poderia ter feito melhor, um trabalho magistral, de respeito e reconhecimento. Foi sugestão dele estabelecermos o texto a partir da primeira edição, publicada em 1933, raríssima. Até então, trabalhávamos com uma segunda edição publicada pela Funarte, de 1978, com algumas interferências do editor. Cada livro uma escolha. O mesmo livro feito por equipes distintas irá produzir obras completamente diferentes. Difícil dizer que é possível fazer um trabalho como esse sem que ele leve a assinatura de cada um que colaborou. Por isso, paramos por um tempo para tentar localizar o único exemplar disponível, num sebo nos Estados Unidos, sem termos certeza se o receberíamos com condições de ser manuseado e lido. E foi!
Novo fôlego para retomar o trabalho, agora com mais convicção de que estávamos indo em direção ao que tínhamos combinado: fazer uma edição comemorativa, cuidadosa, algo de que a gente se orgulhasse. E se divertir no caminho.
Apesar da intenção de sermos fiéis à obra original, nos permitimos uma transgressão: criar o caderno de fotos. Na edição de 1933 foi escolha do Vagalume reproduzir as fotografias dos personagens sobre os quais falava ao longo do livro. Reprodução de fotos 3 x 4, de baixa qualidade, mas claramente uma reverência àqueles personagens. Muitos se tornaram célebres, como Sinhô e Heitor dos Prazeres, outros permaneceram no ostracismo. E na contramão do apagamento, decidimos dar um destaque especial, mesmo não tendo imagens com qualidade ideal para impressão. Testamos, pensamos se valeria a pena, será que o leitor entenderia que não era descuido, mas uma opção por perpetuar a memória daquelas pessoas? Decidimos bancar.
Das decisões práticas (aprovação do projeto gráfico, quem assina a orelha, notas no fim ou no rodapé?) às mais difíceis (quanto vai custar, como distribuir, quantos exemplares fazer), tudo foi muito conversado. Trocas de mensagens alternadas com tarefas paralelas da nossa rotina, porque editores independentes e estreantes não podem se dar ao luxo de viver apenas do que dá prazer. Não ainda.
Tivemos uma rede de apoio: os colaboradores que trabalharam diretamente na edição (Aline Martins, Hugo Michels, Joelma Santos, Lana Carolina, Tathyana Viana, Patrícia Pamplona, João da Paixão), amigos e profissionais que tiraram dúvidas, ajudam a divulgar, torcem pra dar certo. Cada um contribuindo com o que podia dar, sobretudo generosidade.
Mas depois de todas as decisões tomadas, a prova final sobre a mesa, eis que chega o momento: imprima-se? O trabalho com o livro não acaba nem quando termina. Depois da espera sofrida até receber os primeiros exemplares, aquela olhada rápida pra conferir o resultado, o medo de encontrar o erro até então escondido. Parece que acabou, mas é só o começo. Frio na espinha.